Descrição de Alguns Casos de Vitimização e de Mutilação Institucional das Mães d’Água
“uma lepra social”
As verdades são duras
como diamantes,
mas também delicadas
como as mulheres-mães e as
Mães d’Água amazônicas...
Aqui, abordamos alguns relatos de Mães d’Água e mulheres-mães com o intuito de sensibilizar os membros da profissão médica cosmopolita, contra tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, e para chamar a atenção sobre o número cada vez maior de pessoas acometidas pela síndrome de tortura, “uma lepra social” resultante da violência obstétrica moderna.
Caso 1ª - C.A., 56 anos
Ficar deitada na cama de ferro o tempo todo sem poder me mexer. Ah! É horrível! Quando vim por aqui, por São Paulo, tive que ganhar a coroinha no hospital. Ganhei meus dois primeiros coroinhas na minha terra; do terceiro em diante ganhei no hospital. Eu achei horrível, horrível, sabe. Pronto, vou morrer! Falei ainda para o médico: doutor, me deixa descer da cama. Ele disse: não, C.A, não pode porque tem que ser assim. Meu Deus, acho que vou morrer mesmo aqui.
Eu sentia muita dor porque estava deitada e amarrada. Nessa posição, não tem jeito de se movimentar. Aqui, nos hospitais, não perguntam nada e nos fazem sofrer mais, mais e mais. Você se agarra no ferro, na máquina de parto, onde te cortam. Se segura onde puder, onde se achar lugar para se segurar. Lá não tem Mãe d’Umbigo nem outra pessoa para nos segurar e nos amparar espiritualmente. Era uma paisagem aterradora essa sala de coração frio.
Comentário:
É uma descrição angustiante de uma mulher-mãe pronta a dar à luz. Ela se encontrava amarrada na mesa ginecológica, pedindo para que a deixassem descer.
“Não pode”, foi a resposta que ela recebeu, exatamente como diz a Declaração Internacional dos Direitos do Homem: “ninguém será submetido à tortura”.
Caso 2ª - Lu, 50 anos
No hospital, foi triste. Eu ganhei, no total, sete brotinhos, dos quais ganhei dois no hospital. Esses dois que ganhei no hospital foram terríveis. Eu passei muito medo. No final, fiquei transtornada.
Quando cheguei a São Paulo, ganhei a C. Ah! Foi triste! Fui ao hospital com uma dor terrível. Fiquei fazendo hora em casa porque me haviam avisado que aqui era diferente. Me disseram: olha, Lu, aqui é diferente. No hospital, não vai ficar caminhando como em tua casa. Aqui é diferente. Mas eu respondi: a dor é minha e eu não vou suportar sentada ou deitada. Mas aqui é diferente - voltavam a insistir. Insistiam que deveria tomar cuidado para sair tudo bem.
Aí, eu fui para o hospital. Quando eu saí de casa, eu já estava com sinal de sangue e água. Falei para mim mesma - agora começou o sinal de sangue. O brotinho está se encaixando, ele vai começar a descer.
Quando cheguei ao hospital, o médico disse que o “neném” ia nascer logo. Aí, me mandaram deitar. Queriam de qualquer jeito que ficasse deitada. Eu perguntei: mas para que essa cama? A enfermeira disse: você deve ficar deitada. Pensei - eu não vou ficar deitada, eu não vou ficar deitada, nunca vi isso. Ah! A gente fica doida! A gente fica transtornada! Ficar deitada não, minha filha, não vão me segurar aqui. Aí, ela disse que tinha que obedecer porque eram ordens médicas.
Fiquei magoada. Estava sentindo dor, sozinha, longe de todos meus parentes. Eu só queria ter meu filho, mas sentia que estava sendo castigada. Eu não queria deitar. Nunca tive filho deitada. Tirava forças do fundo da alma para que eles me ouvissem.
Me colocaram na cama à força. Pensei em levantar, mas minhas forças já não estavam mais comigo. E eu com todo esse peso no corpo. Eu achei triste. Achei horrível. Choro de raiva, de muita raiva. Eu senti muita dor e nervoso. Não tenho palavras para transmitir o que eu senti naquele momento. Tive que ceder e ficar deitada com toda essa dor. Desde aquela época, ando sentindo dor de cabeça todos os dias e quando fico contrariada dói muito mais. Nunca falei nada para ninguém, sempre escondi esse horror.
É insuportável relembrar tudo o que o brotinho e eu passamos. Ele não sabe nada do seu nascimento, e ele, também, é uma pessoa doente.
Comentário:
“Sob meus cílios fechados de dor, meus olhos estavam sendo atravessados por imagens de fogo. Chorei de raiva, nunca falei nada para ninguém....” Atualmente, no Brasil, a tortura obstétrica possui mais adeptos na classe médica que se diz civilizada.
Subestima-se o direito da mulher-mãe renascer e fazer nascer, tiram dela o seu direito de escolha. Então, entra o jogo da racionalidade - bisturis, agulhas, anestésicos. E assim, castigam o fundo do ventre e os contornos do períneo.